segunda-feira, 30 de maio de 2011

Dos Pés à Cabeça

           "Esta é uma exposição de negações e de anuências. Pode ser que os vinte e três artistas aqui presentes muito felizmente não tenham uma definição fechada sobre o que seja gravura. No todo da mostra, a gravura surge sub-repticiamente, como uma idéia, um conceito, uma busca e um tormento prazeroso, uma palavra a um só tempo forte pela tradição e enfraquecida a cada vez que é discutida, desmantelada, tornada pó para que receba vinte e três vezes o sopro da vida. Gravura é um nome, apenas, que é atravessado por vontades. Gravura é um modo de apontar com o dedo. Gravura é uma linha com a qual amarramos um grande fardo.
           Neste ato de dizer não para uma tradição (que já matamos quando a tomamos assim) e de dizer sim para o novo (de quem desejamos a morte se pensamos que a gravura é algo acabado, definitivo), temos, porém alguns caminhos que podemos chamar paralelos, similares, primos. 
           Há muitos que destroem, apagam, refutam a placa. Há apenas uma cópia de cada gravura. O primitivismo do processo da gravura dá as mãos com o ato da destruição. Num universo tão marcado pela repetição – em inúmeros momentos do século XX criticada – não há aqui o que ser repetido, impresso duas vezes. Ocorre também o fato de uma sucessão de gravuras ser, cada uma, o que a outra foi um dia, num processo de apagamento e de inserção.
           Há os que narram uma história, a sua, a da própria placa, a do processo, a de uma busca intimista, mas que, de qualquer forma, produz uma narrativa. Alguns andamentos produtivos lembram de longe o universo das HQ’s, dos mangás, das fotonovelas, com a diferença de que os demais processos permitem uma repetição, um jogo de espelhos com reflexos quase infinitos. A narrativa existe, mas está mais para a arte glíptica, preciosa, que demanda tempo e pesquisa, projeto e paciência – e que transforma em única cada peça. Quem pratica a arte glíptica, a de esculpir pedras preciosas, a de fazer relevos nelas, quem busca imagens nas pedras, pode encontrar veios, cores, nós, que são surpresas, que são descobertas, mas que fazem parte do processo. Muitos dos trabalhos aqui são como preciosidades, únicos.
           Há os que buscam imagens internas, dos territórios que freqüentam cotidianamente e com o qual nos presenteiam, trazendo-os à tona, mesmo que sejam mais espinhos que flores. Do mais ensolarado para o mais sombrio, da água mais turva para a superfície mais calma, do frio ao tépido. Do sonho contemplado à vigília combatida.
           Há os que buscam o caminho da rua: o poste, o asfalto, a parede pública (que perde o sentido primitivo, passando aqui a significar não pertencer a ninguém). Gosto de imaginar que estes dois caminhos, mais do que ladearem-se, só existem por causa da presença – erroneamente tomada como oposta – do outro. Não opomos público e privado, eles não coexistem, eles existem. As imagens, mesmo as do inconsciente, são físicas (escadas, árvores, uma faixa de pedestres). Há o caminho místico, entre o religioso e o da sabedoria ancestral, xamânico ou sensorial, simbólico, com o sentido de mistério da vida. Há quem busque o tridimensional, a ironia suprema com as definições sobre o que seja gravura.
         Forma e discurso se mesclam nessa seleção, evidentemente; então, encontramos o grande trabalho e o pequeno formato, o que é chamado infanto-juvenil, uma vez que o paganismo de suas imagens não encontrou melhor gaveta para ser guardado, o que foi tirado após observação de um processo de alvenaria, o que se enamora de Piranesi sem querer, o muito e o pouco, o difuso, o escancarado. Este aspecto múltiplo é um dos mais interessantes da seleção de trabalhos: eles estão imersos numa imensa rede de práticas de “gravura”: a impressão do órgão do doente na folha de acetato, a impressão do arqueólogo que, sem poder levar o obelisco consigo, carrega os hieróglifos numa folha de papel, o resultado da placa que o técnico eletrônico faz submergir em ácido para que o negativo antes feito em nanquim sobreviva, a perfuração delicada do tatuador. O território em que estamos é outro, todavia: mais uma vez não importando o nome que se dê, temos o discurso da Arte.
          Os trabalhos ora perfilados investigam, por fim, a ambigüidade do seguinte enunciado: a síntese nos olha com olhos amedrontados?
          Os artistas presentes nessa mostra são ligados por algo que deve ser citado: o espaço do Solar do Barão. Todos, de uma forma ou de outra, construíram uma história com aquele espaço. Nas salas antigas daquele solar estão gravadas passagens de inúmeros artistas. Aqui, temos vinte e três."

Agosto/06
Benedito Costa Neto
Doutor em Literatura

Texto publicado em catálogo da Casa Andrade Muricy. Exposição aberta de 3 de outubro à 30 de novembro de 2006 no Paraná, em Curitiba. 

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